Saturday, October 3, 2015

GASTÃO CRUZ
Óxido, 2015

Eu tinha abandonado há um tempo este blog, em que ora colocava um ou outro poema meu, ora, para os alunos a quem há alguns anos dei um Seminário de Escrita Criativa, num semestre de Mestrado em Ilustração Artística (e que eram 22) procurava que entendessem como, no processo de criação, a palavra se exprimia, se articulava ou não - em todo o caso como o processo do pensamento, do sentimento, da emoção, se poderiam contidamente manifestar.
A contenção, na arte, passado o primeiro impulso, é definitiva: aí se conserva o que é da essência, limpando o supérfluo, seja do tempo, seja do espaço, do quotidiano que suportou a necessidade absoluta de dizer.
Mas a leitura deste recente (não direi último) livro de poesia de Gastão Cruz, que se iniciou publicando em 1961 no âmbito do grupo que assim se denominava, POESIA 61, procurando abolir cânones antigos, propondo novas formas, que iremos encontrar em Fiama Hasse Pais Brandão, Maria Teresa Horta, Luísa Neto Jorge, Casimiro de Brito - já todos herdeiros de Fernando Pessoa, Sophia de Mello Breyner e todos tendo de uma forma ou outra conhecido intimamente  António Ramos Rosa (natural de Faro, de onde  também Gastão Cruz é natural) este livro, estou eu a dizer, fez-me pensar como o diálogo de uns poetas com os outros pode ser, ou será sempre, determinante para a continuação de uma Obra.
O processo é precisamente o da Escrita Criativa....não é por acaso que Gastão fecha o seu livro com poemas que escreve lendo as cartas de Rimbaud à família, no seu fim de vida, num exílio em que já nada faz sentido.
Rimbaud, um dos maiores génios que a Europa conheceu no século XIX, e tão cedo e tão jovem se calou, tornando-se um negociante de armas, sofrendo fisicamente e espiritualmente no silêncio poético a que se obrigou e ao calar-se interpelando uma existência que perdera significação, leva um poeta actual a uma reflexão aparentemente despida e desprendida, mas que logo no título ÓXIDO, se revela de grande significação.
O apelo de um Rimbaud que a vida intensa esgotou faz eco num poeta cuja vida ainda não sofreu a mesma paralisação da palavra, e  a prova está aqui, nos seus poemas.
Mas leva-lo a sofrer com o outro, a evocar tempos de infância ou juventude num Algarve rural e feliz, agora envelhecido para chegar ao temor do que é um fim de vida " a estátua/  em que foi transformado o sangue/ correndo entre os meus ossos" (p.59).

OURO VELHO
Vou deitar-me na praia quando às três
da tarde está deserta

e o sol lembra o ouro
de outrora mas mais velho
(p.17)

O ouro não sofrerá oxidação mas o desgaste e o desgosto da vida enferrujam corpo e alma. Aconteceu a Rimbaud, mesmo antes de Verlaine ter voltado a uma vida que já não tinha apelo nem agravo.
O que a velhice tem de pior é esse estrago da alma, esse enferrujamento, essa oxidação que nada tem de alquímico, pois não se resolve em matéria subtil,  apenas em dúvida, em ocultação do que outrora fora dizer ou não dizer o nome.
Poderemos, ao longo deste livro, sentir uma outra pulsação: a de Paul Celan, com o seu dizer depurado, o seu dizer descarnado, o fogo que fez da alma pedra e  cinza.
O recolher do nome no recolher do poema:
DIZER UM NOME
Não direi o teu nome para
nós evidente pois estás no centro
da multidão que fomos quando a outros
disputámos o óxido do ouro

Não direi o teu nome como outrora pedi
que não dissesse o meu nome quem tinha
o poder de o dizer em pleno dia:
dizer um nome é sempre uma heresia
(p.19)
Adiante veremos de novo ser evocado um "oceano de ouro oxidado" sobre uma pele deserta (p.33).

No ciclo intitulado CAMPO, atravessando um passado que o tempo deixa ofuscado e deformado ao espelho, recordando os cheiros da infância ingénua, do forno onde se cozia o pão e já lá dentro "a alma", as imagens nítidas (todas elas de um passado real e não imaginado) de "palheiros", "alfarrobas escuras como a terra",  "amêndoas revestidas de brandas cascas cinzentas", "figos" secando
na açoteia, neste ciclo se despede, por assim dizer, o nosso poeta de si mesmo.
As "mãos rápidas", que terão retirado a casca das amêndoas primeiras, serão as mesmas que a ele ameaçam, entre o mar e a terra, a memória passada e a memória futura, mãos de uma pele deserta, a voz enrouquecida temendo já o grito "do vulcão sufocado em sua raiva" (p.54). Mas aqui estamos já no Aden de Rimbaud, na interacção poética de um e outro, no diálogo que ao interpelar re-escreve de novo a poesia, grava na pele o óxido do ouro. Um ouro que é todo de renúncia, que é todo de silêncio, e mesmo assim ofusca.
Nada já em palavras se transforma,
é outro o excesso: o tédio do deserto;
as palavras agora não dão forma
à ausência do mundo de silêncio coberto
(p.56)

Parecendo nos poemas de Aden, em que as epígrafes são quase todas de Rimbaud (na sua correspondência de fim de vida) tentar o desabafo de uma biografia comum, porque sentida, ou de alguma grande saudade igualmente escondida,  o que Gastão Cruz nos deixa, nesta obra, é a sua própria biografia, a única que interessa e nunca deixará de interessar : os seus poemas.
Pois sempre um poeta é maior que a sua vida.




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