Saturday, November 12, 2011

Dias a Fio no Teatro São Luiz

Esta peça de teatro de Luísa Costa Gomes, Dias a Fio, estará no Teatro São Luiz até ao dia 20 de Novembro.
Enredo simples, encenação descomplicada e engenhosa, de Ana Tamen, como já acontecera há anos com outra peça da mesma autora, Nunca Nada de Ninguém.
Preparem-se para rir, com a verve dos diálogos e das situações descritas.
Depois, pensando melhor, talvez chorar um pouco.
A peça é um Fresco da sociedade actual dominada pela voracidade do ganho, mesmo quando já não há nada para ganhar, do lucro imediato sobre a imediata necessidade de alguém - seja um arrivista ou um destituído, mas que precisa de ter e de que "os que sabem" (os "empreendedores") se aproveitam: como por exemplo na venda de um poço com soalho flutuante, ou de uma garagem com estacionamento em frente.
De exemplo em exemplo,de ideia engenhosa em ideia engenhosa, acabará uma das protagonistas assassinada pelo marido da outra, e ao aparecer em fantasma à amiga e competidora de outrora leva-a a exclamar, com entusiasmo: ah. mas abre-se aí um enorme espaço de oportunidades....pensa nisso.
Diverti-me imenso e quem me conhece sabe que sou fã da obra de Luísa Costa Gomes, desde os seus primeiros Contos de Sobressalto, e até hoje.
Mas qual a razão de trazer aqui esta proposta de ida ao teatro que acabará por certo em proposta de leitura, quando sair o livro?
Uma razão muito simples e que se prende com o exercício da Escrita:
O bom escritor não vive em torre de marfim, alheado do mundo; o bom escritor capta o real na sociedade que o rodeia, com a qual vive e convive diariamente.
Quantos anúncios de compra e venda de casa não terão levado a autora à crítica transformada em riso desta peça? Quantas situações de famílias disfuncionais ao jantar a três, de pai, mãe e filho numa cena que evoca Ionesco no seu melhor? Quantos diálogos ouvidos ao acaso numa esplanada?
Por outras palavras: escrever é escrever o mundo: seja o mais íntimo, da nossa alma, ou o mais exposto da sociedade em redor.
Respondo assim a alguns dos meus alunos que me perguntavam: escrever como?não sei sobre o quê!
O quê, o como, estão todos os dias - dias a fio - à nossa disposição.
Ah, é preciso olhar, é preciso não ser indiferente, é preciso reagir, aprender a reagir e depois o resto acontece com o treino de mão.
Ler ajuda, claro. Ler sempre, ler muito.
E ver: neste caso ver pelos olhos atentos de Luísa!
Nesta peça - além do riso pantagruélico - há um olhar que não teme, um olhar que não se desvia.
E na exposição de vida que é um palco, com todos os elementos que o habitam (aqui entra a parte do excelente desempenho dos actores e do carinho de toda a equipa de produção) encontramos finalmente as bocas que não calam!

Tuesday, October 18, 2011

Ler Poesia


A poesia tem algo de especial e que a diferencia da narrativa, outra forma não menos interessante de criação literária.
Podemos ler só um poema, ou só um verso que nos atraia e ficando nele ampliamos a nossa relação com o mistério que toda a obra contém.
Da narrativa esperamos (exigimos) que tenha um fio que se desenrole e a cada momento (capítulo) acrescente mais matéria à que já foi exposta, conduzindo( ou não, os modernistas trouxeram a obra aberta) a um final que conclua o enredo inicialmente aberto e foi criando determinadas expectativas ao leitor.
Com o poema tudo é (aparentemente) mais fácil: abrimos o livro ao acaso, começamos onde calhe ter ficado a página, e lemos:
alguma poesia é mais quotidiana, mais directa, mais narrativa;
outra será mais condensada, mais hermética, obrigando a uma releitura ou uma reflexão mais demorada;
alguma viverá sobretudo do ritmo,
ou da voz que rima e canta,
outra usará o verso como se fosse prosa,
etc.
Para cada estilo, haverá um leitor "ideal".
E para cada leitor um autor, um poeta, um poema ou mesmo só um verso que o marque para sempre.
Recordo Sophia de Mello Breyner e um dos poemas do livro CORAL que li quando jovem e nunca mais esqueci:

Ia e vinha
e a cada coisa
perguntava
que nome tinha

Mais tarde, ao ler as Aventuras de Alice, este poema que nunca mais esqueci remeteu o sentido da interrogação para o decifrar das questões que eram colocadas pela impertinente lagarta a essa menina ora em crescimento ora em diminuição impossível.
Aí estava o segredo, no desejo de saber, algo que só perguntando, perguntando sempre pode alcançar resposta, se existir. Pois nem sempre há resposta...
Fiquemos com esta ideia de que poesia é interrogação.
Pensando em Rilke, outro grande poeta que também me marcou quando era jovem, evoco o primeiro verso de uma das Elegias de Duíno :

Quem se eu gritasse me ouviria entre as hierarquias dos Anjos...

Tão forte o seu mistério, tão intensa a interrogação, que quando precisei de um título para o meu primeiro romance foi neste verso que me inspirei.

Falamos de poesia "popular", de poesia "culta", de poesia "concreta", de poesia "experimental" - mas pouco importa.
O acto de criar, neste caso, o poema, nasce de uma pulsão que é funda, ou não é coisa nenhuma; nasce de um sentimento, mais do que de uma intenção ou de uma ideia-feita.
Mas claro, se o poeta é culto, é muito natural que nos seus poemas entre em diálogo com o que leu e nesse diálogo dê uma outra voz à matéria poética "integrada".
Nada nasce do nada e a voz poética tem também a sua raiz, a terra que a alimenta.

Vem isto a propósito do último livro de Ana Luísa Amaral, VOZES, (Dom Quixote, 2011) cuja leitura me entusiasmou e só posso recomendar.
O leitor encontrará nesta obra o coloquial e o erudito atravessados por um fino humor que não se compadece de lágrimas furtivas ainda que exprima espanto, ou dôr, ou algum sofrimento, como o de quem conhece a solidão.
As Vozes de Luísa são muitas e todas nos desafiam.
Poderá ser na cama, na praia, na cozinha, num qualquer banco de jardim: mas ali estão e estão (como Deus está na Mandorla de Celan) porque é de sempre a voz da poesia, é de sempre o seu eco, vindo do Antigamente ou do Agora e Aqui.
Nos poemas encontro Rilke, mas encontro Bocage, ou o trovar dos Cavaleiros, ou os mitos de amor como o de Pedro e Inês.
Mas encontro acima de tudo, e com que indizível prazer, uma escrita despida, moderníssima de linguagem, e nas entrelinhas a subtil mas permanente discussão do peso da palavra ( o sentido e o estilo).
São sílabas? São versos que cantam e encantam, interrogações como as de sempre, de Sophia ou Alice, num nomear que é dela, Ana Luísa, e não poderia ser de mais ninguém: Ana Luísa rompe e interrompe, a palavra poética tornou-se o seu domínio, ela domina o verso e o seu avesso!


Saturday, October 15, 2011

Almas, com dedicatória especial ao António

A reacção de um amigo escritor ao pequeno poema que lhe enviei, Almas, e a seguir transcrevo, levou-me a várias considerações sobre o acto de escrever, a mão que escreve, a origem do impulso que dirige o tema, as ideias, as imagens...Dizia o meu amigo que o poema transcende a esfera do seu entendimento e que ele é mais da prosa do que da poesia. Claro que estava a brincar.
Eis o poema:
Para que alma voltamos
na hora de partir:
há uma alma que chora
há uma alma que ri...

Na altura pensei em recordar ao António (é o nome do amigo) que já Platão falava nos cavalos da alma, que já os antigos hindus falavam da transmigração das almas ( o que supõe a existência de suas várias transformações) que o Livro Tibetano dos Mortos ( que foi durante muitos anos para mim um livro de cabeceira) indica logo nas primeiras páginas de que modo a alma deve buscar a luz condutora, para evitar uma reencarnação penosa - enfim, que há todo um saber arcaico, um imaginário poderoso que de repente pode surgir num conjunto de versos que ocorrem e tomam conta da nossa própria escrita, sem que saibamos logo o porquê e o como.
É essa obscura memória do que foi lido e guardado que pode, nalguns casos, como este, suscitar de repente um texto só aparentemente misterioso.
Procurando exemplos mais recentes, descubro em T.S.Eliot e Paul Celan matéria que seria ideal para epígrafe, antecedendo o meu poema, tornando-o, quem sabe, um pouco mais claro:
T.S.Eliot
"Surge da mão de Deus a alma simples..." (Animula)
Paul Celan
" Coloca então as folhas junto às almas..." (A Posse dos Sonhos)

O que quero dizer é simples: que por vezes é o comentário ou a interrogação de um outro, neste caso o meu amigo, que nos obriga ao esforço de perceber de onde veio o impulso, que razões (neste caso leituras, reflexões bem antigas) estão afinal na origem de um pequeno alinhar de versos que de repente nos surgem e passamos ao papel.

Saturday, August 13, 2011

Friday, August 5, 2011

Mais Poesia

Para os amantes de poesia, e que desejam o risco de escrever, que é como um risco de vida, para quem escreve, aqui deixo um poema que deve ser lido e relido, em voz alta, em voz baixa, com amor:
Sintonia para pressa e presságio
de Paulo Leminski

Escrevia no espaço.
Hoje, grafo no tempo,
na pele, na palma, na pétala,
luz do momento.
Soo na dúvida que separa
o silêncio de quem grita
do escândalo que cala,
no tempo, distância, praça,
que a pausa, asa, leva
para ir do percalço ao espasmo.

Eis a voz, eis o deus, eis fala,
eis que a luz se acendeu na casa
e não cabe mais na sala.


Nos últimos três versos temos a chave do poema e da criação poética: O Verbo, o deus da Inspiração que faz do Verbo um Dizer poético, com a luz que se acende, não na casa, não na sala -mas na alma.
É da alma que fala a poesia!

Tuesday, June 28, 2011

Pensando, Escrevendo, Pensando...

Porquê

Antigamente era frequente ouvir uma criança perguntar porquê repetidas vezes, ainda que se desse uma resposta; à resposta dada era exigido outro porquê, outra resposta e assim sucessivamente, para cansaço do adulto que ia respondendo, até que por fim já farto dizia porque sim e acabava a litania de perguntas e respostas.
Hoje a criança não se dirige ao adulto para perguntar, dirige-se aos botões para logo, sem perguntar, obter alguma resposta, mais rápida e mais interessante; faz isso com um ano de idade ou pouco mais, vejo-o por um dos meus netos: todos os botões, dos comandos de televisão aos dos jogos da psp, do iphone ou do computador. As respostas são dadas pelas imagens, e o maravilhamento é total. Na cozinha, onde estão proibidos de entrar, é o fogão ou o micro-ondas que desperta a curiosidade.
Mas a interrogação, o porquê, lá permanece à mesma.
Falei de crianças, mas poderia (deveria) falar de adultos. Da nossa capacidade de interrogação, de manter activos os comandos interiores dos porquês: da nossa vida, da vida que nos rodeia. No nosso caso talvez o excesso de respostas (ainda que falsas) aliado à velocidade com que são dadas, não permitindo uma elaboração mais integrada, prejudica a necessidade interior de outrora, de perguntar, de perguntar sempre. Ainda não se fez a pergunta e a resposta, uma qualquer resposta, aí está disponível, pronta a ser consumida e se necessário logo depois a ser deitada fora e substituída por outra, igualmente veloz e disponível.
Vivemos pois entre respostas que se foram substituindo ao perguntar mais insistente.
Um sonho que apontei mostrava-me o postal enviado por um amigo alemão. Reconheci a sua letra, aberta e generosa, de bom amigo.
Começava com esta pergunta, escrita em português, que ele fala bem (também é um bom amigo de Portugal) : Porquê ?
Este porquê prendeu-me a atenção, durante dias, até que decidi apontar o sonho.
E continuo a pensar no sentido profundo desta palavra que é interrogação.
A interrogação tem a ver com a consciência, a consciência de si, o conhecimento ou reconhecimento. No caso de um sonho, sendo a linguagem dos sonhos simbólica, este porquê aponta para algo mais do que a consciência, talvez antes o reconhecimento da necessidade do interrogar, a interrogação mais do que qualquer resposta.
Encontro nas Alices de Lewis Carroll – a do “País das Maravilhas” e a do “Através do Espelho” vários porquês, todos interessantes pelo momento em que surgem, pelo fascínio das personagens que lhes dão voz, pela perplexidade que causam, levando a novos porquês (novas interrogações).
Apercebo-me de que não interessa a resposta e ninguém em verdade espera por ela. O importante era a interrogação, e a consequente perplexidade causada.
É essa a função da pergunta: fazer pensar, e não obter uma resposta imediata, como se julga. Tinha razão a criança de outrora, ao não aceitar as respostas, umas atrás das outras, na pergunta residia o interesse, daí a repetição, a insistência…
Para este sonho que contei, também é preciso uma “pequena chave de ouro”, como a de Alice, que se esqueceu dela em cima da mesa ao diminuir de tamanho, não podendo assim entrar logo no jardim que tinha avistado pela porta mais pequena. Entrámos noutro mundo, noutra esfera, em que é preciso diminuir, para depois aumentar e continuar na aventura – uma aventura cheia de contradições, como nos sonhos, e que pelas contradições se resolvem. Um mundo de outra lógica e que de outra maneira tem de ser abordado.
“Quem diabo sou eu? Ah, esse é o grande enigma! “(p.22). Este é o capítulo II, em que surgem variadíssimos animais, revelando a Alice um outro mundo, que não responde logo à sua interrogação: na verdade, e Carroll sabia isso, só cada um por si pode responder às próprias interrogações!
Alice está no lago de lágrimas a conversar com o Rato, que lhe diz que primeiro têm de sair dali, depois ele contará a sua história:
“ Já não era sem tempo de fugiram dali, porque o lago estava a ficar apinhado de pássaros e animais que nele tinham caído: havia um Pato e um Dodó, uma Arara e uma pequena Águia, e várias outras estranhas criaturas. Alice pôs-se à frente deles e nadaram todos para terra firme”(p.29).
Simplifico: depois de uma figuração do que poderia ser uma descida ao inconsciente, ao mundo dos sonhos (Alice adormecera junto à árvore onde a irmã lhe lia um conto) assistimos a um conjunto de situações todas elas indicadoras de processos de transformação (os alquimista diriam de sublimação) desde as pulsões do negro da alma, os instintos, simbolizados pelos inúmeros animais de que a águia, ainda que pequena, é a mais espritual representante, até ao não menos provocante jogo com os 4 elementos: terra e água, para começar, enquanto não se alude ao fogo e ao ar, que virão adiante.
Mas não esqueço o meu fio conditor, da interrogação.
E é pela personagem da Lagarta que a interrogação melhor se manifesta:
“- Quem és tu?- perguntou” , a lagarta a Alice (p.49).
Neste diálogo assistimos à litania de perguntas que a cada resposta se sucedem, não aceitando o que é dado como explicação.
A Lagarta insiste: “Quem és tu? “ (p.50). E depois dá-lhe então o conselho que a fará aumentar novamente de tamanho; desta vez não come um bolo, mas um cogumelo e cresce ao ponto de ficar mais alta do que uma árvore, com a cabeça lá no alto a tocar o céu (entrou o elemento ar).
O interrogatório continua, pela voz de uma Pomba, que ela assustou tirando-a do ninho. A pomba, que a julgara serpente, pergunta “Bem !O que é que tu és? “ (p.56). E a resposta, de que Alice era uma menina, não a deixa satisfeita, como seria de esperar. Pois não se trata aqui de respostas, mas de perguntas, como já disse…
A pergunta agora não é quem, mas o que.
E ambas difíceis, no contexto do conto, como no de nós próprios e das nossas vidas e do mundo que nos rodeia, em permanente mutação.
Na verdade, se soubessemos o quem e o que – teríamos a resposta ao porquê com que comecei esta reflexão.
O porquê, enviado por carta oriunda da Alemanha - país da Alma, como alguém lhe chamou, contrapondo-o a França, país da Razão – terá que ver com as razões da alma, do seu esquecimento, talvez, numa altura em que preocupações do quotidiano familiar, social, politico, me afastam da escrita – meu caminhar interior.
Nesse meu caminhar, onde o tempo se torna espaço (como diz Gurnemanz a Parsifal, na obra de Wagner, falando do reino do Graal) – espaço de transformação da palavra ausente mas sempre desejada, descobrirei talvez o quem, o que e por fim o porquê!

Sunday, May 1, 2011

Versos

Muitas vezes é no primeiro verso de um poema, ou no último, ou em ambos que iremos encontrar alguma indicação especial, pedindo mais reflexão.
Aconteceu-me reparar nisso ao reler ultimamente o poema de Rilke sobre o mito de Orfeu e Eurídice.
" Era a mina estranha onde se encontram as almas" - eis o verso inicial.
Deste modo, aparentemente apenas descritivo de um lugar, evoca Rilke Platão, o diálogo de Fédon, em que se fala da caverna das almas, neste sentido de "essências" de ser, de formas puras de que as formas reais seriam apenas sombras (sombras de uma realidade superior, inatingível).
A mina- uma caverna platónica- é estranha exactamente por isso: por ser anterior aos seres tal qual os conhecemos.
Orfeu e Eurídice ainda lá se encontram, ainda não têm existência real, não são ainda as formas de que o mito tradicional nos fala.
Rilke coloca-nos numa outra esfera, de anterioridade. Diverge, sem que nos apercebamos logo desse facto, da realidade do mito.
Orfeu e Eurídice, ainda não são e em breve já não poderão vir a ser , tal como se julgava outrora, quando os mitos eram realidades vividas.
E podemos então meditar sobre o último verso, com que o poema termina:
"Quem?"
pergunta Eurídice, perdida toda a memória de um Orfeu que ainda não tinha sido e não seria mais.
Entre o não-ser-ainda da caverna das almas e o já-não-ser da memória perdida se estrutura um poema que podemos ler e reler, descobrindo de cada vez mais um fragmento do seu mistério envolvente.

Saturday, April 23, 2011

Teresa Horta


Num romance podemos encontrar matéria que fascine, tanto no tema, como no enredo, como ainda na estrutura que um autor, neste caso uma autora, Teresa Horta, concebe para dar forma e sentido ao que pretende escrever.
No seu romance A Paixão Segundo Constança H. Teresa Horta inspirou-se, para o título, no célebre romance de Clarice Lispector, A Paixão Segundo G.H.
Recordo, quando o li, como aquele exercício de escrita minuciosa (estávamos em plena época do nouveau roman) me impressionou a ponto de quase me incomodar. A neurose de uma mulher, presa em si mesma como na mais negra das prisões, era o fio kafkiano condutor da escrita tensa e intensa de Clarice. Neste romance já ela estava longe dos primeiros que li,A Maçã no Escuro e Perto do Coração Selvagem. Nessa altura Joyce era para nós, jovens, o grande modelo de reinvenção da linguagem. Mas escritoras como Agustina Bessa Luís, entre nós, e Clarice Lispector, no Brasil inventavam novos caminhos que eram para nós leituras de descoberta.
Em A Paixão Segundo G.H. Clarice já tinha reinventado o que tinha sido o seu mundo e chegara a hora de simplesmente o destruir, como iria fazer com a barata que ocupa uma grande parte da narrativa em que a observa, já impotente e condenada - como ela se via a si mesma.
No Brasil , Teresa Horta, leitora amiga de Clarice, pede autorização para se servir de um título que a tinha seduzido.
E assim nasce A Paixão Segundo Constança H. de trama intensa, romance de amor negro como os mais negros da literatura fantástica romântica.Já a escolha das epígrafes, de Marguerite Duras, e sobretudo de Clarice Lispector, dão uma primeira indicação de leitura:
"...estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender.Aconteceu-me alguma coisa que eu, pelo fato de não a saber como viver, vivi uma outra?" (A paixão segundo G.H.)
E começam então, a abrir cada capítulo, os apontamentos que são estruturantes a tal ponto que sem eles o verdadeiro sentido da história que se conta se perderia talvez não por completo, mas em grande parte.
E aqui está uma inovação na arte de narrar.
Percebemos, por essas notas à margem, que o não são, ( como as célebres notas da almofada de Julián Ríos em Larva, por sua vez bebidas em Sei Shonagon, romancista japonesa do século XII) que nos vai ser contada a descida aos infernos de uma mulher em vias de enlouquecer e que está a ser tratada, com comprimidos, injecções, que não ajudavam a que recuperasse a sua consciência dum tempo e dum espaço cada vez mais estranhos. "começava a misturar tudo?".
Traída pelo marido que ama apaixonadamente descreve como os sentimentos se alteram, como o amor cede o lugar ao ódio e como esse ódio, afinal bem mais forte do que o amor, se enraíza, cresce dentro dela e a alimenta.
Sucedem-se as cruas cenas do suicídio ( que seria afinal assassínio) e da morte da amante, e são introduzidos no discurso-percurso romanesco os extractos do diário de Constança H.
Pelas notas continuamos a acompanhar, do mesmo modo, as idas à psicanalista, e por elas vemos como a loucura progride, como se aproxima o abismo temível e temido.
Também surgem poemas, que na sua condensação de linguagem dizem mais, às vezes, do que as páginas que se lhes seguem:
"É aqui, que a febre
da loucura
aumenta

Que o grito se contém
mas nunca se contenta"

Os tempos oscilam, cruzando passado e presente, e anunciando um futuro que já sabemos ser trágico - foi dito logo de início. Mas algo mais se exprime, para além da tragédia, ou apesar dela, ou mesmo contra ela: a dôr da condição feminina. A dôr de não ser incluída, ainda que vivendo a vida.
É possível morrer de amor? A resposta neste romance é : sim; e é possível matar:
matar por excesso de amor ( já a trágica Medeia passara por experiência igual).
Adiante na narrativa, será mais uma vez no diário de Constança que mais uma chave é dada quanto ao seu sofrimento, num poema de amor:

MORRER DE AMOR
Morrer de amor
ao pé da tua
boca

Desfalecer à pele
do sorriso

Sufocar de prazer
com o teu corpo

Trocar tudo por ti
se for preciso
(p.249)

História de uma vida que carregava a maldição do desejo incontido, do amor sensual, do ódio que amarfanha e ao mesmo tempo endurece, esta é uma obra complexa, que obriga a uma leitura atenta: pois muito se conta e muito fica por contar, nesta espécie de devoração da alma. Uma alma que só mesmo a loucura poderia libertar.
Falei um pouco do enredo, mas quero chamar a atenção para a originalidade cuidada e intensa da estrutura. Quase sempre o enigma é concentrado na estrutura!Clarice Lispector, num reflexão sobre a Escrita, diz:
"Todo o homem tem sina obscura de pensamento que pode ser o de um crepúsculo e pode ser uma aurora".E ainda: " Sempre quis atingir através da palavra alguma coisa que transmitisse (...) a verdade mais profunda existente no ser humano e nas coisas.Cada vez mais eu escrevo com menos palavras".
Mas não nos enganemos, diz no seu romance Teresa Horta: nem tudo é poente ou aurora, nem tudo é silêncio adquirido.Há sangue na palavra. Há uma carne rasgada.Um corpo que a alma atravessou : o corpo de quem escreve.

Friday, April 22, 2011

O Centro: Orfeu. Eurídice. Hermes


Num célebre poema de Rainer Maria Rilke, inspirado nos hinos órficos da Grécia antiga, podemos acompanhar Orfeu e Eurídice, guiados pelo deus Hermes, caminhando nas trevas, procurando a luz da vida que Orfeu quer devolver à sua amada.
A viagem de Orfeu começou por uma descida ao Centro, à caverna profunda onde as almas se formam e onde, depois da morte, de novo são acolhidas.
Exterior ao tempo, no Centro não se guarda a memória: nem do que se foi nem do que se virá a ser. O Centro é devorador.
Atravessou-se primeiro o rio Lethes, precisamente aquele em que toda a memória se dissolve.
E ao emergir, como quem nasce, ou renasce, a vida que se inicia é como a página em branco que aguarda a mão perplexa do poeta com os seus primeiros versos.
Os versos são, como no longo poema-travessia de Rilke, apenas uma interrogação.
Eurídice, que não chega a abrir os olhos (nada vê, nada sabe, nada sente) não sai do sono profundo da interrogação: Quem? diz ela, e volta para trás, regressa ao Centro de onde nunca tinha saído.
Era ilusão de Orfeu, no seu caminho, confundir a sombra com a forma, o desejo com uma realidade em que a vida deixara de pulsar.
Meditemos sobre o Centro: " a mina estranha onde se encontram as almas".
Um Centro como um buraco negro, atravessado por finos fios de prata : fios de vida.
E dentro dos fios um sangue espesso correndo: a púrpura da vida.
Orfeu, com a sua lira, a Amada fechada em si, como um botão de rosa, ambos a caminhar e entre eles Hermes, o Guia.
Um Guia que não conduz, pois não indica o caminho, não faz sequer um gesto amigo que acalme a ansiedade que cresce, a dúvida que se instala, buraco no coração do poeta.
Tranquila, ainda envolta nos panos do seu primeiro sono, Eurídice caminha sobre o vazio imenso que nenhum medo perturba.
Hermes lançará então o grito aterrador: "olha! ele voltou-se!"
Orfeu cairá nesse vazio.
Eurídice exclama apenas: Quem?
E Hermes, o do caduceu dourado, nada responderá.
Não há respostas no Centro, apenas anulação.

Em Paul Celan encontraremos uma ainda mais dolorosa meditação do Abismo. Talvez porque ele não interrogue procurando resposta, mas simplesmente afirme e confirme a sua existência de absoluto Vazio, absoluto Sem-Fundo, como já o definiam os místicos alemães, os teósofos como Boehme, entre outros.
Num dos seus últimos poemas (Celan suicida-se em 1970, em Paris) encontramos estas imagens:
Projectado
na via de esmeralda
buraco de larva, buraco de estrela,
com todas as quilhas
procuro-te
Sem-fundo

A via de esmeralda será a da Tábua de Esmeralda dos antigos alquimistas: uma via de salvação, na medida em que nela se reflectem o Uno e o Todo do universo criado. A travessia será contudo parecida com a de Orfeu na sua treva imensa:
buraco de larva, buraco de estrela, isto é, um Centro (como era no poema de Rilke a mina das almas) de onde as formas partiam e onde acabariam igualmente por chegar, na sua última (de)composição.
Nas imagens da larva e da estrela encontramos o segredo de uma transformação, ou transmutação desejada: na larva a essência não manifestada, na estrela ( podia ser borboleta, como em Alice no País das Maravilhas) o fulgôr da manifestação, do acabamento perfeito de toda a pulsão oculta.
A referência às quilhas remete-nos para o belo poema de Rimbaud, Le Bâteau Ivre , que foi marco de toda a poesia modernista (Álvaro de Campos entre nós, e Celan, que o traduziu).
Rimbaud explode como um barco que embate e se afunda, no seu poema, como se afundará na sua vida.
Celan, demasiado contido, não explode, mas inquire e sofre, pois não encontrará o que procura: uma resposta para o silêncio de Deus perante o seu povo perseguido.
Este Sem-Fundo é um eterno Nada, e o que podemos concluir é que no homem reside o Centro, em si e não fora de si, nalgum outro lugar que se conceba. No homem reside o princípio e o fim, o homem é o meio,por ele passa a linha que os atravessa, os separa e os une.
São paradoxais as realidades da alma, os poetas dão voz a essas realidades. E citando Celan é "descendo mais fundo" que o homem se liberta.


Sunday, April 10, 2011

Das Trevas

Das trevas não tenho medo
só da luz por trás do espelho:
Alice feita relógio
Alice feita coelho...

A Sombra / O Medo (cont. com Erica)

E como ficou Penélope
quando Ulisses regressado
se escondeu do seu olhar
se mostrou desconfiado
e lhe retirou os fios
e desfez todos os nós

os nós que ela tinha atado...

A Sombra / O Medo


A Sombra / O Medo (respondendo a Erica)

Hermes estava perdido
no meio da sua sombra
e Eurídice que o seguia
tinha esquecido o caminho

O caminho e o caminhante
Orfeu que viria salvá-la
da nigredo e da memória
desafiando o destino

Wednesday, March 30, 2011

A Sombra / O Medo

Recordação das Correntes d'Escrita, onde acabei por escrever um poema que proponho para ideia - base de outros que o queiram "abrir", como numa espécie de cadáver esquisitíssimo. Um ponto de partida, nada mais:

Que sombras saem da sombra
e que dizer do silêncio
que nos afoga em palavras
e dentro delas o medo

Thursday, March 17, 2011

Da Importância da Memória


Tudo na Escrita é Memória?
Com Marcel Proust (Em Busca do Tempo Perdido, obra de arte literária universal) poderíamos dizer que sim.
O mesmo com muitos outros, em cujos romances ou poemas encontramos um caminho feito de recuperação de memórias, antigas ou recentes, de leituras ( a leitura que nos marca deixa a sua marca de memória).
Ao reler a obra da Princesa Shikishi, poeta japonesa do século XII (conhece-se a data da sua morte, em 1201), traduzida para inglês por Hiroaki Sato, encontro uma epígrafe que ele coloca no início, como homenagem a uma outra poeta que parece ser emblemática para a essência mesma do livro da Princesa, cujo título é String of Beads, Colar de Contas (na verdade pérolas da sensibilidade poética da autora); eis o poema citado como epígrafe:
I am not a person.
I am a succession of persons
Held together by memory.

When the string breaks,
The beads scatter.
( Lindley Williams Hubbell)

Traduzindo:
Não sou uma pessoa.
Sou uma sucessão de pessoas
Reunidas pela memória.

Quando o cordão se rompe,
as contas espalham-se.
(l.W.Hubbell)

Nos poemas da Princesa, escritos em Kyoto, no ambiente de uma corte medieval, numa sociedade fechada como era a sociedade japonesa, de resto ainda hoje extremamente discreta e reservada, cumprem-se as normas rigorosas do Haiku e seus temas preferenciais: indicação da estação do ano (marcando a memória do tempo), e condensação poética de dois versos para uma imagem/uma ideia, exprimindo a sensação/emoção do momento; porque os ciclos podem ser "soltos" e sem marca temporal, mantendo só o tema principal.
Escolho ao acaso, do ciclo do "amar e esperar":

À tua espera, não vou para o meu quarto. / Não brilhes sobre a porta de madeira de cipreste, lua junto aos montes.

Ou ainda:

Se eu não fosse viva ele não seria tão cruel, até ao dia seguinte./ Visita-me esta noite, se puderes.

Mas deixemos os Haiku e falemos da memória, o repositório que une sensações e emoções, e as transforma no todo único que permite que uma pessoa e a sua consciência de ser se revelam como tal: um todo único.
Não havendo memória não haveria tal consciência, mas antes a permanente inquietação do que se é, onde se situa o centro ( ou o fio, como no colar de contas) que nos define e garante que somos o que somos e não um esparso conjunto de sensações ou emoções de fragmentação e deriva.
A Fractura que esta desconexão indicia é própria da modernidade e dos cultores da poesia ou prosa do século XX ( o mesmo se dá na Arte) sobretudo com as teorias e práticas modernistas do início do século.
O poeta do modernismo interroga, perplexo, a sua consciência:
Vamos a Fernando Pessoa, num dos primeiros ciclos, datados de 1913:
ALÉM-DEUS
I / ABISMO
Olho o Tejo, e de tal arte
Que me esquece olhar olhando,
E súbito isto me bate
De encontro ao devaneando -
O que é ser-rio, e correr?
O que é está-lo eu a ver?

Sinto de repente pouco,
Vácuo, o momento, o lugar.
Tudo de repente é ôco -
Mesmo o meu estar a pensar.
Tudo - eu e o mundo em redor -
Fica mais que exterior.

Perde tudo o ser, ficar,
E do pensar se me some.
Fico sem poder ligar
Ser, ideia, alma de nome,
A mim, à terra e aos céus...

E súbito encontro Deus.

A primeira estrofe é da maior importância, no poema: ali o poeta se interroga sobre o que é ser, e a interrogação do ser -do-rio o levará à interrogação e consciência de si próprio.
Caído num ôco em que o ser se perde, num vazio de sentimento e pensamento que o torna alheio a si e ao mundo em redor, é nesse adormecimento, nessa sombra, nesse escuro de alma que virá a descobrir Deus.
Mas não ficamos com a certeza que o mais importante tenha sido a descoberta de Deus , pois o resto do poema não mais se debruçará sobre a experiência transcendente que a exclamação anterior figura.
Pelo contrário, o mais importante é, por um lado, a interrogação do real ( o rio) e por outro o esvaziamento de alma, como na experiência do Nirvâna budista - esvaziamento que abre as portas do dizer do inconsciente.
Alguns falariam de descida ao inconsciente e natural expressão de imagens próximas das imagens oníricas, as produzidas nos sonhos e de que nem sempre nos lembramos.
A descida permite que elas se façam lembrar, e a descida não é mais do que um esvaziamento da consciência que favorece que novas formas surjam.
A esta conclusão nos leva a Quinta Parte do poema, em que já para além do Além- Deus do título do ciclo, se penetra no imaginário surreal próprio do sono e do sonho, mas mantendo, como estrutura funda a interrogação:
V / BRAÇO SEM CORPO BRANDINDO UM GLÁDIO
Entre a árvore e o vê-la
Onde está o sonho?
Que arco da ponte mais vela
Deus?...E eu não fico tristonho
Por não saber se a curva da ponte
É a curva do horizonte...

Entre o que vive e a vida
Pra que lado corre o rio?
Árvore de folhas vestida -
Entre isso e Árvore há fio?
Pombas voando - o pombal
Está-lhe sempre à direita, ou é real?

Deus é um grande intervalo,
Mas entre quê e quê?...
Entre o que digo e o que calo
Existo?
Quem é que me vê?
Erro-me...E o pombal elevado
Está em tôrno da pomba, ou de lado?

O gládio de um braço sem corpo é a figuração de uma racionalidade aguda, cortante, que separa os dois níveis de uma psique ( de um Eu ) em fractura, a consciência e o inconsciente (o sonho que dele emana);haverá fio - isto é, ligação- entre o ser e o ter a consciência de que se é? Ou está perdido, de momento ou mesmo para sempre, o elo que ligaria o poeta à eterna Cadeia de Ser de que nos fala Arthur O. Lovejoy, em The Great Chain of Being?Para existir é necessário ser visto? E por quem, senão pelo próprio ( a sua consciência) na contemplação do espelho dos seus sonhos ( o seu inconsciente)?
Fala o poeta da "escada absoluta sem degraus" numa estrofe anterior: os degraus só poderiam ser construções, reconstruções, das "contas" do colar da memória.
Sem memória como haveria interrogação possível?
E como se poderia pressentir ausência ou existência de consciência, de Deus, do mundo (o rio, a árvore, o pombal com a sua pomba) ou de nós mesmos?
A Princesa do Japão evoca, nos seus poemas, as memórias com que ficou ao retirar-se para um convento, do seu amor perdido: memórias de lágrimas, esperanças, alegrias e tristezas; Pessoa procura transgressões, com a desmultiplicação heteronímica, mas regressará sempre a si mesmo, recuperando as contas do seu colar oculto de memórias antigas.







Tuesday, March 8, 2011

The Hare with Amber Eyes

Uma obra-prima, em breve a ser apresentada em português, pela Sextante.
Como a partir de uma herança de peças japonesas, os netsuke, miniaturas de colecção em que a arte do mínimo se alarga aos grandes sentimentos universais -como a paixão - se consegue escrever uma obra por onde passa toda uma época, a de um Paris elegante onde tudo se tornava possível: o fulgôr da riqueza, o fulgôr da beleza, lado a lado com a luz só aparentemente menor da inscrição no mínimo, o netsuke.
Leitura recomendada para quem deseje escrever.
Anote-se a minúcia, o cuidado, o poder de observação e descrição - das peças evoluindo para as pessoas, algumas reais outras certamente ficcionadas.

Tuesday, March 1, 2011

Rui Zink


Vem mesmo a propósito, esta reedição do ANIBALEITOR de Rui Zink.
Trata-se de um livro leve mas culto (guarda nas entrelinhas a erudição que o inspira) prazeiroso (como diriam alguns brasileiros amigos) e muito divertido.
Em suma, redescobrir esta prosa saudável é um conforto de alma.
Alguns escritores, ao crescer no sucesso, envelhecem. A pose e a antiga inspiração secam em simultâneo.
Mas felizmente para nós, leitores, nem todos envelhecem assim, pomposos, aborrecidos, pensando que uma reedição não merece entusiasmo, do próprio e dos outros, que vão ler, se não leram antes. É o meu caso, não tinha lido antes.
E aqui recomendo, aos que desejam aprender "escrita criativa" que comecem, antes de tudo, por ler.
Ler e reler.
E então navegar nas torrentes da escrita. Quem leu, não se afogará - e dos outros não devemos ter pena.
Esta leitura foi para mim como que respirar de novo num país algo abafado, pela pompa e pela circunstância ( mas desta não falarei aqui...)

Monday, February 28, 2011

Correntes d' Escritas


Um encontro internacional de escritores que vai na décima segunda edição, decorre na Póvoa de Varzim, em vários espaços que não deixam de fora as escolas com alunos e professores a quem se concede o privilégio de conhecer e falar com poetas, romancistas, criadores que com eles discutem os seus processos de criação.
Este ano havia uma interessante mistura de portugueses e ibero-americanos, e africanos de várias gerações.
Havia os habituais, que não quiseram faltar, e os que lá estavam, nessas correntes que eu chamei de torrentes, pela primeira vez. Para estes, em cujo grupo me incluo, o encontro foi uma revelação.
As sessões decorreram num anfiteatro sempre apinhado de gente de todas as idades, vinda de todos os lados e que ali se reunia para comprar os livros dos "lançamentos", ou outros que queriam de edições anteriores.
As várias sessões das várias mesas tinham temas que era suposto os convidados desenvolverem. Dou um exemplo: "Não há palavras exactas".
Ocorreu-me que eu poderia ter participado nessa mesa:
De palavras exactas, as que nunca se encontram, falara eu outrora no meu romance, já tão antigo, primeira edição de 1972, chamado As Palavras Que Pena. O final da história que contava era trágico, com um jovem que para descobrir as palavras exactas ( da verdade, da comunicação, do amor que se deseja ouvir e exprimir) estrangula a jovem que perseguira na praia. Uma jovem que viera de longe, também ela em busca de alguma verdade, de um Absoluto impossível de palavras exactas , e acabaria por morrer ali às mãos de um acaso de vida semelhante ao seu:
"...As mãos do rapaz instalaram-se na garganta de Vera. Como não dizia nada as mãos começaram a apertar devagarinho. Vamos obrigar as palavras a sair. Ajude-me. Faça as palavras sair enquanto eu as empurro. Vera deixou de tremer. Já não sentia medo. Apenas a certeza. La Mort, à tout jamais la Mort, maintenant.Ouviu de longe o ralo espesso que lhe saía da boca e parecia vir de outra boca de outra pessoa diferente. Está quase, disse o rapaz. Já oiço qualquer coisa. As mãos apertaram com mais força (...) Que pena,murmurou. Que pena, as palavras saíram esborrachadas".
Na sua edição actual este romance está incluído no conjunto das edições ASA/LEYA intitulado TRÊS HISTÓRIAS DE AMOR.
Escrito aos trinta anos eu ouvia agora de longe o seu eco, como que a lembrar-me que para esta questão eterna, da busca da verdade (da exactidão?) das palavras não há tempos diferentes , a questão, por ser vital e universal é e será de todos os tempos e todas as gerações.
A sessão em que participei tinha por tema "Nada no mundo deve ser subestimado".
Parti então de um belíssimo poema de Paul Celan, Entrada de Violoncelos que termina de um modo verdadeiro e pungente, como tudo o que ele escreve:
Tudo é menos, do
que é,
tudo é mais.
Deste poema parti para outro, de Paulinho Assunção ( que esteve nestas Correntes em 2010) com o seu poema inspirado em Celan e tendo por título Mazurca para dois violoncelos.
A minha ideia é que também as imagens poéticas se contaminam umas às outras e "não devem ser subestimadas". Dessa contaminação nasce outra ideia, outra imagem , outro poema, como aconteceu neste caso.
O mesmo se pode aplicar à escrita romanesca: todo o detalhe, por pequeno que seja, se torna importante ao ser escrito e integrado no todo da narrativa.
Foi o que me aconteceu com o romance DO LONGE E DO PERTO, edição da SEXTANTE, que fui apresentar com o meu editor e amigo João Rodrigues.
Neste romance também eu, ainda sem conhecer os temas que seriam escolhidos, tinha procurado que nada fosse subestimado, nem do longe, nem do perto, nem do sonho, nem da vida.
É um romance que atravessa - tempos, espaços, história, memória - e se deixa atravessar.
A capa, do atelier de Henrique Cayatte sobre um quadro do americano Edward Hopper, resume bem o romance: o de uma mulher que, sentada à janela, olha o mundo: o seu e o dos outros; pois no dos outros ( não o subestimando) está contido o seu.
Os encontros das Correntes d'Escrita também têm uma mulher que olha o mundo: refiro-me à organizadora, Manuela Ribeiro.
A ela, à sua energia e à sua alegria fiel, pois em cada novo ano recomeça, todos nós, do longe e do perto, devemos um agradecimento muito especial e uma saudação.
Que as correntes, que são torrentes de alma, continuem.



Sunday, February 13, 2011

Breton e os seus Manifestos

Esta fotografia que Man Ray fez de André Breton em 1931 levou-me a reler os Manifestos do Surrealismo e as razões pelas quais o terceiro do conjunto foi considerado inútil para os fins ideológicos em vista..
A tentativa, que ficou incompleta, de um Terceiro Manifesto do Surrealismo, mostra como é difícil, na arte ou no exercício da Escrita Criativa, manter um modelo ideológico de enquadramento teórico, fechado, como Breton preconizava de início.
A arte é livre, só em liberdade poderia evoluir.
Ora esses mesmos, praticantes do cadavre-exquis, forma tão inovadora e tão provocadora de dar voz ao inconsciente a várias mãos, como poderiam aceitar que a sua produção, de maior ou menor originalidade, conforme os casos (nem todos seriam génios, como dizia Salvador Dali, que cortou com o grupo) se orientasse mais para a transmissão de lições políticas do que para a fruição máxima do Belo na arte que era a sua?
Eles, os libertadores por excelência na área do Modernismo?
A intervenção política tivera o seu momento, com o Expressionismo, com o Futurismo - aliás de posições ideológicas opostas: os primeiros defendendo o marxismo, os últimos, como no caso de Marinetti, não recusando o fascismo.
Suspensa a ideia de um terceiro manifesto que pudesse ser inovador, e mais útil do que os outros, recuperou-se a sonhadora alegria de um imaginário onírico puro, dando origem a poemas, a novelas, a desenhos e pinturas de que entre nós ainda Artur do Cruzeiro Seixas, felizmente vivo, dá testemunho.

Já de resto, noutro campo, Fernando Pessoa e Cia. não tinham conseguido levar a bom termo o n.3 de Orpheu.
Entre algum Simbolismo já descrente de si mesmo, passando para um exercício que se poderia dizer, em alguns, como Fernando Pessoa ou Augusto Ferreira Gomes de "escrita automática", a teoria fundadora (fosse a sensacionista, a futurista ou outra) falhara, como acabam por falhar todas as teorias.
Não usemos esse termo: falhar, digamos esgotar.
As teorias esgotam-se, pelo facto de o serem.
Só a inspiração permanece, e só os dotados dessa forma de génio progridem no seu caminho.
O que fazem?
No caso da escrita, escrevem.
A inspiração, chegado o momento, não faltará.