Saturday, April 23, 2011

Teresa Horta


Num romance podemos encontrar matéria que fascine, tanto no tema, como no enredo, como ainda na estrutura que um autor, neste caso uma autora, Teresa Horta, concebe para dar forma e sentido ao que pretende escrever.
No seu romance A Paixão Segundo Constança H. Teresa Horta inspirou-se, para o título, no célebre romance de Clarice Lispector, A Paixão Segundo G.H.
Recordo, quando o li, como aquele exercício de escrita minuciosa (estávamos em plena época do nouveau roman) me impressionou a ponto de quase me incomodar. A neurose de uma mulher, presa em si mesma como na mais negra das prisões, era o fio kafkiano condutor da escrita tensa e intensa de Clarice. Neste romance já ela estava longe dos primeiros que li,A Maçã no Escuro e Perto do Coração Selvagem. Nessa altura Joyce era para nós, jovens, o grande modelo de reinvenção da linguagem. Mas escritoras como Agustina Bessa Luís, entre nós, e Clarice Lispector, no Brasil inventavam novos caminhos que eram para nós leituras de descoberta.
Em A Paixão Segundo G.H. Clarice já tinha reinventado o que tinha sido o seu mundo e chegara a hora de simplesmente o destruir, como iria fazer com a barata que ocupa uma grande parte da narrativa em que a observa, já impotente e condenada - como ela se via a si mesma.
No Brasil , Teresa Horta, leitora amiga de Clarice, pede autorização para se servir de um título que a tinha seduzido.
E assim nasce A Paixão Segundo Constança H. de trama intensa, romance de amor negro como os mais negros da literatura fantástica romântica.Já a escolha das epígrafes, de Marguerite Duras, e sobretudo de Clarice Lispector, dão uma primeira indicação de leitura:
"...estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender.Aconteceu-me alguma coisa que eu, pelo fato de não a saber como viver, vivi uma outra?" (A paixão segundo G.H.)
E começam então, a abrir cada capítulo, os apontamentos que são estruturantes a tal ponto que sem eles o verdadeiro sentido da história que se conta se perderia talvez não por completo, mas em grande parte.
E aqui está uma inovação na arte de narrar.
Percebemos, por essas notas à margem, que o não são, ( como as célebres notas da almofada de Julián Ríos em Larva, por sua vez bebidas em Sei Shonagon, romancista japonesa do século XII) que nos vai ser contada a descida aos infernos de uma mulher em vias de enlouquecer e que está a ser tratada, com comprimidos, injecções, que não ajudavam a que recuperasse a sua consciência dum tempo e dum espaço cada vez mais estranhos. "começava a misturar tudo?".
Traída pelo marido que ama apaixonadamente descreve como os sentimentos se alteram, como o amor cede o lugar ao ódio e como esse ódio, afinal bem mais forte do que o amor, se enraíza, cresce dentro dela e a alimenta.
Sucedem-se as cruas cenas do suicídio ( que seria afinal assassínio) e da morte da amante, e são introduzidos no discurso-percurso romanesco os extractos do diário de Constança H.
Pelas notas continuamos a acompanhar, do mesmo modo, as idas à psicanalista, e por elas vemos como a loucura progride, como se aproxima o abismo temível e temido.
Também surgem poemas, que na sua condensação de linguagem dizem mais, às vezes, do que as páginas que se lhes seguem:
"É aqui, que a febre
da loucura
aumenta

Que o grito se contém
mas nunca se contenta"

Os tempos oscilam, cruzando passado e presente, e anunciando um futuro que já sabemos ser trágico - foi dito logo de início. Mas algo mais se exprime, para além da tragédia, ou apesar dela, ou mesmo contra ela: a dôr da condição feminina. A dôr de não ser incluída, ainda que vivendo a vida.
É possível morrer de amor? A resposta neste romance é : sim; e é possível matar:
matar por excesso de amor ( já a trágica Medeia passara por experiência igual).
Adiante na narrativa, será mais uma vez no diário de Constança que mais uma chave é dada quanto ao seu sofrimento, num poema de amor:

MORRER DE AMOR
Morrer de amor
ao pé da tua
boca

Desfalecer à pele
do sorriso

Sufocar de prazer
com o teu corpo

Trocar tudo por ti
se for preciso
(p.249)

História de uma vida que carregava a maldição do desejo incontido, do amor sensual, do ódio que amarfanha e ao mesmo tempo endurece, esta é uma obra complexa, que obriga a uma leitura atenta: pois muito se conta e muito fica por contar, nesta espécie de devoração da alma. Uma alma que só mesmo a loucura poderia libertar.
Falei um pouco do enredo, mas quero chamar a atenção para a originalidade cuidada e intensa da estrutura. Quase sempre o enigma é concentrado na estrutura!Clarice Lispector, num reflexão sobre a Escrita, diz:
"Todo o homem tem sina obscura de pensamento que pode ser o de um crepúsculo e pode ser uma aurora".E ainda: " Sempre quis atingir através da palavra alguma coisa que transmitisse (...) a verdade mais profunda existente no ser humano e nas coisas.Cada vez mais eu escrevo com menos palavras".
Mas não nos enganemos, diz no seu romance Teresa Horta: nem tudo é poente ou aurora, nem tudo é silêncio adquirido.Há sangue na palavra. Há uma carne rasgada.Um corpo que a alma atravessou : o corpo de quem escreve.

No comments:

Post a Comment