A biografia de Henri Michaux, publicada por Robert Bréchon, tem como sub-título "la poésie comme destin": a poesia como destino.Aqui está uma afirmação que nos faz reflectir: o que é a poesia; o que é o destino; e o que é a poesia como destino.
Podemos simplesmente dizer que se entenda destino como objectivo, como propósito final de um esforço, neste caso de produção poética.
Mas é claro que não é isso que Bréchon pretende; o que ele quer dizer é que a vida de Michaux se definiu pela poesia e para a poesia, transformando-se na substância mesma da energia vital que o suportava, na rotina dos dias.
São poucos, provavelmente, na história da literatura, aqueles de quem se pode dizer o mesmo. Que tiveram a poesia como destino. E os que conhecemos morreram talvez cedo, pobres e sós.
Falo de Michaux, poderia falar de Pessoa?
Michaux escreve, num dos seus primeiros textos, já carregados de nostalgia poética:
Il souffle un vent terrible.
Ce n'est qu'un petit trou dans ma potrine,
Mais il y souffle un vent terrible.
Sopra um vento terrível.
É só um buraquinho no meu peito
Mas sopra lá dentro um vento terrível.
Segue o poema (refere-se a Quito, do livro Ecuador) descrevendo a urgência premente de uma grande cidade, com os seus males ( o ódio, a inveja) e todo o desejo que comporta: um desejo como um buraco no peito, por onde sopra o vento, um vento que é Sopro criador, ainda que seja terrível.
Quando desenvolve este poema, dá-lhe um título que o define, a ele e ao poema...
JE SUIS NÉ TROUÉ
....
Ah, comme on est mal dans ma peau!
....
Et c'est ma vie, ma vie par le vide.
S'il disparaît, ce vide, je me cherche, je m'affole et c'est encore pire.
Je me suis bâti sur une colonne absente
.....
etc.
Nasci Furado....
Ah como me sinto mal comigo!
E trata-se da minha vida, a minha vida através do vazio
Quando desaparece, este vazio, procuro-me, assusto-me, e é ainda pior.
Ergui-me sobre uma coluna ausente
...
Fernando Pessoa haveria de ter gostado de ler Michaux, são como duas almas não digo gémeas, mas em espelho. A experiência que Michaux teve da África equatorial e tanto o repeliu, teve Pessoa numa infância que não sabemos dizer se foi completamente feliz. Mas que marcou a descoberta e exercício da língua (língua outra, o inglês mas outras, as nativas, ainda mais diferentes) e o que a língua faz ao pensamento que deseja exprimir-se...
A obra de Michaux é levada, na poesia como na pintura, por esse vento que sopra no seu peito, e o empurra, fazendo com que mude de esfera, flutue no seu vazio, que ele definiu como "algodão e silêncio", um "silêncio de estrelas", que deixa tudo em suspenso.
O buraco no peito não tem forma, escreve ele adiante no poema, embora seja tão profundo...
Atropelam-se em nós outras imagens: o Ungrund dos místicos alemães (Boehme), ou o Sem-fundo de Paul Celan, o poeta recém-chegado à poesia, também ele, como destino (morre suicidando-se no Sena, em 1970):
Projectado
na via de esmeralda
buraco de larvas, buraco de estrelas, com todas
as quilhas
procuro-te,
Sem-fundo.
(trad. Y.Centeno, Literatura e Alquimia, 1987)
Projectado
na via de esmeralda
buraco de larvas, buraco de estrelas, com todas
as quilhas
procuro-te,
Sem-fundo.
(trad. Y.Centeno, Literatura e Alquimia, 1987)
Michaux, Celan: que confluência de abismos!
Se é certo que em cada poeta e para cada poeta a palavra certa é irrepetível, só a ele pertence, só a ele foi dada(como em revelação, fruto do Sopro interior que leva, eleva, transforma) não é menos certo que todos bebem de uma fonte comum, se afundam numa onda que os lava e se erguem na glória de um destino que foi, como diz Bréchon, de entrega à Poesia.
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