Num romance podemos encontrar matéria que fascine, tanto no tema, como no enredo, como ainda na estrutura que um autor, neste caso uma autora, Teresa Horta, concebe para dar forma e sentido ao que pretende escrever.
No seu romance A Paixão Segundo Constança H. Teresa Horta inspirou-se, para o título, no célebre romance de Clarice Lispector, A Paixão Segundo G.H.
Recordo, quando o li, como aquele exercício de escrita minuciosa (estávamos em plena época do nouveau roman) me impressionou a ponto de quase me incomodar. A neurose de uma mulher, presa em si mesma como na mais negra das prisões, era o fio kafkiano condutor da escrita tensa e intensa de Clarice. Neste romance já ela estava longe dos primeiros que li,A Maçã no Escuro e Perto do Coração Selvagem. Nessa altura Joyce era para nós, jovens, o grande modelo de reinvenção da linguagem. Mas escritoras como Agustina Bessa Luís, entre nós, e Clarice Lispector, no Brasil inventavam novos caminhos que eram para nós leituras de descoberta.
Em A Paixão Segundo G.H. Clarice já tinha reinventado o que tinha sido o seu mundo e chegara a hora de simplesmente o destruir, como iria fazer com a barata que ocupa uma grande parte da narrativa em que a observa, já impotente e condenada - como ela se via a si mesma.
No Brasil , Teresa Horta, leitora amiga de Clarice, pede autorização para se servir de um título que a tinha seduzido.
E assim nasce A Paixão Segundo Constança H. de trama intensa, romance de amor negro como os mais negros da literatura fantástica romântica.Já a escolha das epígrafes, de Marguerite Duras, e sobretudo de Clarice Lispector, dão uma primeira indicação de leitura:
"...estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender.Aconteceu-me alguma coisa que eu, pelo fato de não a saber como viver, vivi uma outra?" (A paixão segundo G.H.)
E começam então, a abrir cada capítulo, os apontamentos que são estruturantes a tal ponto que sem eles o verdadeiro sentido da história que se conta se perderia talvez não por completo, mas em grande parte.
E aqui está uma inovação na arte de narrar.
Percebemos, por essas notas à margem, que o não são, ( como as célebres notas da almofada de Julián Ríos em Larva, por sua vez bebidas em Sei Shonagon, romancista japonesa do século XII) que nos vai ser contada a descida aos infernos de uma mulher em vias de enlouquecer e que está a ser tratada, com comprimidos, injecções, que não ajudavam a que recuperasse a sua consciência dum tempo e dum espaço cada vez mais estranhos. "começava a misturar tudo?".
Traída pelo marido que ama apaixonadamente descreve como os sentimentos se alteram, como o amor cede o lugar ao ódio e como esse ódio, afinal bem mais forte do que o amor, se enraíza, cresce dentro dela e a alimenta.
Sucedem-se as cruas cenas do suicídio ( que seria afinal assassínio) e da morte da amante, e são introduzidos no discurso-percurso romanesco os extractos do diário de Constança H.
Pelas notas continuamos a acompanhar, do mesmo modo, as idas à psicanalista, e por elas vemos como a loucura progride, como se aproxima o abismo temível e temido.
Também surgem poemas, que na sua condensação de linguagem dizem mais, às vezes, do que as páginas que se lhes seguem:
"É aqui, que a febre
da loucura
aumenta
Que o grito se contém
mas nunca se contenta"
Os tempos oscilam, cruzando passado e presente, e anunciando um futuro que já sabemos ser trágico - foi dito logo de início. Mas algo mais se exprime, para além da tragédia, ou apesar dela, ou mesmo contra ela: a dôr da condição feminina. A dôr de não ser incluída, ainda que vivendo a vida.
É possível morrer de amor? A resposta neste romance é : sim; e é possível matar:
matar por excesso de amor ( já a trágica Medeia passara por experiência igual).
Adiante na narrativa, será mais uma vez no diário de Constança que mais uma chave é dada quanto ao seu sofrimento, num poema de amor:
MORRER DE AMOR
Morrer de amor
ao pé da tua
boca
Desfalecer à pele
do sorriso
Sufocar de prazer
com o teu corpo
Trocar tudo por ti
se for preciso
(p.249)
História de uma vida que carregava a maldição do desejo incontido, do amor sensual, do ódio que amarfanha e ao mesmo tempo endurece, esta é uma obra complexa, que obriga a uma leitura atenta: pois muito se conta e muito fica por contar, nesta espécie de devoração da alma. Uma alma que só mesmo a loucura poderia libertar.
Falei um pouco do enredo, mas quero chamar a atenção para a originalidade cuidada e intensa da estrutura. Quase sempre o enigma é concentrado na estrutura!Clarice Lispector, num reflexão sobre a Escrita, diz:
"Todo o homem tem sina obscura de pensamento que pode ser o de um crepúsculo e pode ser uma aurora".E ainda: " Sempre quis atingir através da palavra alguma coisa que transmitisse (...) a verdade mais profunda existente no ser humano e nas coisas.Cada vez mais eu escrevo com menos palavras".
Mas não nos enganemos, diz no seu romance Teresa Horta: nem tudo é poente ou aurora, nem tudo é silêncio adquirido.Há sangue na palavra. Há uma carne rasgada.Um corpo que a alma atravessou : o corpo de quem escreve.
No comments:
Post a Comment