Estou a ler os contos de Etgar Keret, Sete Anos Bons, que o João Rodrigues publicou na Sextante.
Um livro em cheio para mim, de um autor da idade dos meus filhos,
é mais um desta geração que escreve simples, directo, uma linguagem por vezes
crua, de tão nua, mas que deixa escapar, sob um humor que ora faz rir ora
sorrir, a verdade dos dias: no caso dele, judeu, não praticante, discordando
das políticas seguidas pelo seu Governo, os dias de Israel. Escreve na primeira
pessoa, é casado e com um filho, cujo futuro também o preocupa. Mas em todos os
momentos que descreve, esteja na sua casa ou em viagem, nalgum país distante,
como no conto da Tailândia, sob palavras aparentemente normais podemos sentir
que pulsa a mesma inquietação, a do que é ser judeu no mundo de hoje? Não sendo
um dos fanáticos da ortodoxia, sendo
laico, se assim se pode dizer, culto, letrado, escritor de sucesso já muito
premiado, continua mesmo assim a ser judeu, reconhecendo-se como tal? E porquê?
Conhece os textos e os rituais, pois foram-lhe ensinados desde o berço, mas só
gosta de uma data, o Yom Kipur, o dia da Expiação, ou do Perdão, que o faz voltar a casa, cancelando outros
compromissos. Como um católico gosta de celebrar o Natal.
O Yom Kipur é celebrado dez dias depois do Ano Novo, com orações e
jejum.
Eis pois o nosso autor, que afirma não acreditar em nenhum Deus,
embora respeite a religiosidade da sua irmã, com onze filhos (que ele começou
por dizer que iriam ser um fardo, e depois se habituou a gostar imenso deles,
visitando-os todas as semanas) a cumprir um dos feriados mais importantes do
calendário da sua religião que não pratica.
Os avós, que não conheci, nascidos e criados em Lodz, na Polónia,
com nove filhos, cinco raparigas e quatro rapazes.
As raparigas, que evoco com um misto de carinho e melancolia, eram
Allah, Mallah, Regina (desta contou a minha mãe que era pianista, bastante
conhecida) Guenia, minha tia-madrinha, vivendo em Paris desde os dezoito anos,
e a minha mãe, Ruchla, mas usando um petit
nom que a Guenia lhe pusera, Rosine. Como Rosine conheceu o meu pai, em
Paris, e foi ele que a avisou do perigo da invasão dos alemães, sugerindo que
viesse para Lisboa. Ela assim fez, casaram e nasci eu a seguir, em 1940. Os
rapazes eram Artur, Kali, Michel e Léon. Conheci todos, em França, em Paris, em
casa da tia Guenia. Minto, o Léon conheci primeiro, em pequena, em Buenos
Aires, quando o meu pai emigrou, farto de ser perseguido pela PIDE.
Contava a minha mãe que os pais eram muito religiosos, mas
liberais em relação aos filhos a quem não obrigavam a seguir as suas práticas.
E na verdade, os que conheci, todos os tios, e das tias apenas Guenia, o resto
da família, que ficou na Polónia, morreu nos campos de concentração durante a
ocupação nazi, - os que conheci não eram praticantes.
Allah, que tinha casado mais cedo, com um arqueólogo que fora
trabalhar para Israel, não morreu na Polónia, mas enlouqueceu, ao que consta,
perante o que a esperava no Kibutz em que os sionistas se instalavam. Conheci a
sua filha Tovik, de visita a Paris com o pai, antes de ir fazer a tropa, como
todas as jovens daquele tempo em Israel. Morreu cedo, de um ataque cardíaco.
O que teriam sonhado para tantos filhos, os meus avós praticantes
de uma religião tão antiga quase como a espécie humana, e onde estava o seu
Deus quando foram barbaramente perseguidos, chacinados, tratados como animais?
Terão duvidado da sua existência, do seu amor compassivo? Ou nem
para isso lhes foi concedido tempo?
Este jovem escritor que agora leio teve também família na Polónia
dos meus. Mas pertence a uma geração já nascida e criada em Israel, um país que
todos os dias se refaz a si próprio, progride em direcção a um futuro incerto,
com uma resiliência inesgotável. É no presente que concentram as forças. Daí
que sejam tão ganhadores...contra tudo e contra todos.
Este livro de Etgar Keret é obra de ganhador: quanto mais não seja
pela boa dose de ironia que aplica aos momentos que escolhe e vão definindo os
dias e os anos. Sete Anos Bons? Número mágico, os sete dias da Criação!
Mas espero que ele não se ponha a descansar no sétimo dia, terá de
certeza tanta coisa ainda para escrever!
Avançando na leitura, descubro que tem um capítulo dedicado à
Polónia, onde já esteve num encontro de escritores e onde se avivaram memórias
do que os pais lhe contaram. No horror dos campos de concentração todas as
memórias de judeus polacos, sobreviventes, são iguais. Percebo que o meu tio
Michel, um sobrevivente de Auschwitz, onde perdeu a mulher e um filho pequeno,
onde ficou marcado para sempre com um tumor cerebral que o paralisou (de tanta
pancada que um dos guardas lhe dava) - nunca quisesse falar disso. Foi pela
Guenia que eu soube da sua história.
Extraordinário amiga e Prof Yvete um abraço
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