Tudo na Escrita é Memória?
Com Marcel Proust (Em Busca do Tempo Perdido, obra de arte literária universal) poderíamos dizer que sim.
O mesmo com muitos outros, em cujos romances ou poemas encontramos um caminho feito de recuperação de memórias, antigas ou recentes, de leituras ( a leitura que nos marca deixa a sua marca de memória).
Ao reler a obra da Princesa Shikishi, poeta japonesa do século XII (conhece-se a data da sua morte, em 1201), traduzida para inglês por Hiroaki Sato, encontro uma epígrafe que ele coloca no início, como homenagem a uma outra poeta que parece ser emblemática para a essência mesma do livro da Princesa, cujo título é String of Beads, Colar de Contas (na verdade pérolas da sensibilidade poética da autora); eis o poema citado como epígrafe:
I am not a person.
I am a succession of persons
Held together by memory.
When the string breaks,
The beads scatter.
( Lindley Williams Hubbell)
Traduzindo:
Não sou uma pessoa.
Sou uma sucessão de pessoas
Reunidas pela memória.
Quando o cordão se rompe,
as contas espalham-se.
(l.W.Hubbell)
Nos poemas da Princesa, escritos em Kyoto, no ambiente de uma corte medieval, numa sociedade fechada como era a sociedade japonesa, de resto ainda hoje extremamente discreta e reservada, cumprem-se as normas rigorosas do Haiku e seus temas preferenciais: indicação da estação do ano (marcando a memória do tempo), e condensação poética de dois versos para uma imagem/uma ideia, exprimindo a sensação/emoção do momento; porque os ciclos podem ser "soltos" e sem marca temporal, mantendo só o tema principal.
Escolho ao acaso, do ciclo do "amar e esperar":
À tua espera, não vou para o meu quarto. / Não brilhes sobre a porta de madeira de cipreste, lua junto aos montes.
Ou ainda:
Se eu não fosse viva ele não seria tão cruel, até ao dia seguinte./ Visita-me esta noite, se puderes.
Mas deixemos os Haiku e falemos da memória, o repositório que une sensações e emoções, e as transforma no todo único que permite que uma pessoa e a sua consciência de ser se revelam como tal: um todo único.
Não havendo memória não haveria tal consciência, mas antes a permanente inquietação do que se é, onde se situa o centro ( ou o fio, como no colar de contas) que nos define e garante que somos o que somos e não um esparso conjunto de sensações ou emoções de fragmentação e deriva.
A Fractura que esta desconexão indicia é própria da modernidade e dos cultores da poesia ou prosa do século XX ( o mesmo se dá na Arte) sobretudo com as teorias e práticas modernistas do início do século.
O poeta do modernismo interroga, perplexo, a sua consciência:
Vamos a Fernando Pessoa, num dos primeiros ciclos, datados de 1913:
ALÉM-DEUS
I / ABISMO
Olho o Tejo, e de tal arte
Que me esquece olhar olhando,
E súbito isto me bate
De encontro ao devaneando -
O que é ser-rio, e correr?
O que é está-lo eu a ver?
Sinto de repente pouco,
Vácuo, o momento, o lugar.
Tudo de repente é ôco -
Mesmo o meu estar a pensar.
Tudo - eu e o mundo em redor -
Fica mais que exterior.
Perde tudo o ser, ficar,
E do pensar se me some.
Fico sem poder ligar
Ser, ideia, alma de nome,
A mim, à terra e aos céus...
E súbito encontro Deus.
A primeira estrofe é da maior importância, no poema: ali o poeta se interroga sobre o que é ser, e a interrogação do ser -do-rio o levará à interrogação e consciência de si próprio.
Caído num ôco em que o ser se perde, num vazio de sentimento e pensamento que o torna alheio a si e ao mundo em redor, é nesse adormecimento, nessa sombra, nesse escuro de alma que virá a descobrir Deus.
Mas não ficamos com a certeza que o mais importante tenha sido a descoberta de Deus , pois o resto do poema não mais se debruçará sobre a experiência transcendente que a exclamação anterior figura.
Pelo contrário, o mais importante é, por um lado, a interrogação do real ( o rio) e por outro o esvaziamento de alma, como na experiência do Nirvâna budista - esvaziamento que abre as portas do dizer do inconsciente.
Alguns falariam de descida ao inconsciente e natural expressão de imagens próximas das imagens oníricas, as produzidas nos sonhos e de que nem sempre nos lembramos.
A descida permite que elas se façam lembrar, e a descida não é mais do que um esvaziamento da consciência que favorece que novas formas surjam.
A esta conclusão nos leva a Quinta Parte do poema, em que já para além do Além- Deus do título do ciclo, se penetra no imaginário surreal próprio do sono e do sonho, mas mantendo, como estrutura funda a interrogação:
V / BRAÇO SEM CORPO BRANDINDO UM GLÁDIO
Entre a árvore e o vê-la
Onde está o sonho?
Que arco da ponte mais vela
Deus?...E eu não fico tristonho
Por não saber se a curva da ponte
É a curva do horizonte...
Entre o que vive e a vida
Pra que lado corre o rio?
Árvore de folhas vestida -
Entre isso e Árvore há fio?
Pombas voando - o pombal
Está-lhe sempre à direita, ou é real?
Deus é um grande intervalo,
Mas entre quê e quê?...
Entre o que digo e o que calo
Existo?
Quem é que me vê?
Erro-me...E o pombal elevado
Está em tôrno da pomba, ou de lado?
O gládio de um braço sem corpo é a figuração de uma racionalidade aguda, cortante, que separa os dois níveis de uma psique ( de um Eu ) em fractura, a consciência e o inconsciente (o sonho que dele emana);haverá fio - isto é, ligação- entre o ser e o ter a consciência de que se é? Ou está perdido, de momento ou mesmo para sempre, o elo que ligaria o poeta à eterna Cadeia de Ser de que nos fala Arthur O. Lovejoy, em The Great Chain of Being?Para existir é necessário ser visto? E por quem, senão pelo próprio ( a sua consciência) na contemplação do espelho dos seus sonhos ( o seu inconsciente)?
Fala o poeta da "escada absoluta sem degraus" numa estrofe anterior: os degraus só poderiam ser construções, reconstruções, das "contas" do colar da memória.
Sem memória como haveria interrogação possível?
E como se poderia pressentir ausência ou existência de consciência, de Deus, do mundo (o rio, a árvore, o pombal com a sua pomba) ou de nós mesmos?
A Princesa do Japão evoca, nos seus poemas, as memórias com que ficou ao retirar-se para um convento, do seu amor perdido: memórias de lágrimas, esperanças, alegrias e tristezas; Pessoa procura transgressões, com a desmultiplicação heteronímica, mas regressará sempre a si mesmo, recuperando as contas do seu colar oculto de memórias antigas.