Saturday, September 28, 2019

Um Villon Português


Um Villon português

Oh velhadas que sobrais por aí,
Na ilusão de que viver é bom,
Despertai com os filhos, também eles já velhotes,
Para uma nova e dura realidade:
O mundo é das crianças, de vozes assassinas,
De nada vos serviu educá-las com esforço
 E a preceito,
Já nada disso conta, estais a mais na imagem,
Ninguém sabe quem fostes, ou quem sois,
E pior, se ainda sois,
A nada tendes direito

O tempo não regride
Em carecas não ficam bem trancinhas,
E o que sobra da gritaria vã
Já não acorda os ais das memórias perdidas.

Thursday, August 29, 2019

Cybele


O Cântico de Cybele

“Tudo em repouso:
  A treva e a luz,
  A flor e o livro”.
( Rainer Maria Rilke, Sonetos a Orfeu )

1.
A lua cobriu o rosto
com a sua nuvem lilás:
ouviu-se
dentro da noite
uma raiz
 arrancada
uma flauta
 a soluçar
 2.
Vai o veleiro cortando
as ondas das águas claras
ao leme a criança eterna
aprendendo a navegar
onde irá ter o veleiro:
ao areal desejado
 ou
às profundezas do mar?
 3.
Orfeu demorava-se
 ali,
abraçando a sua Amada
junto às pedras do ribeiro.
Disse à deusa:
quem me verá renascer
quem dirá meu nome
inteiro?
 4.
A deusa disse à Amada:
vem ter comigo
quando quiseres chorar,
guardei Orfeu
no meu peito
vamos num carro
 de luz
não te vou abandonar
 5.
É tempo.
Busquemos aquelas grutas 
onde se formam
as almas:
são elas que nos protegem,
contam os dias
as horas
dizem os nomes inteiros
de quem vai a caminhar






Sunday, August 25, 2019

Árvores

Vou à varanda
ver as árvores
de copas
que não ardem,
estão ainda 
em suspenso
temerosas


aguardam 
uma brisa suave
o esvoaçar das aves 
nos seus ninhos
que a seguir traga 
chuva
ou traga vento

alguma coisa
de imagem
ideia
ou pensamento
que redesenhe a nuvem
desejada
e possa devolver à árvore, 
tão em suspenso,
mais uma vez
a luz,
o verde
o fruto
e
todo o seu talento
(2019)

Thursday, March 14, 2019


Uma cisterna
um poço cheio de água:
quantos dali terão bebido
quantos terão ali mesmo morrido

Ao descer o balde
ou o corpo
ferido



Tuesday, March 12, 2019

Para a Eugénia Vasconcelos

Sete degraus, disse ela.
Sempre a descer.
Não seria necessário,
pois caminhar para o Hades
exigiria um barco,
não uma escada,
um barqueiro
e mais três moedas
que ele se dispusesse
a aceitar.
Nem sempre isso acontecia:
se o rio estivesse revolto ele ia,
mas não voltava.

Não valia a pena
ficar ali
a esperar


Thursday, September 6, 2018

Um Rosto



UM ROSTO
Era um rosto assustador, quem o fixasse morria.
Não se sabia porquê, não tinha forma de nada 
e só surgia nos sonhos daqueles que não dormiam.


Mini-mini contos: O Menino



Era um menino especial: olhava, mas não falava.
Em cada palavra vista descobria algum sentido. Sentidos que tinham côr e ele não dizia a ninguém. Olhava, mas não falava.

Na côr que ninguém sabia estava todo o seu dizer.